24 maio, 2002

Abolaieu - Cena 3
Eu e os três outros grandes clubes do Rio
Botafogo
Sim, eu confesso: já vesti a camisa do Botafogo. E não vou dizer que o Botafogo era um time inofensivo ou indiferente; vesti a camisa do Alvinegro em um momento de maniqueísmo, era eles ou o Flamengo - não que houvesse alternância de títulos, pois quem ganhava era Vasco ou Fluminense - afinal, como eu escrevi no texto publicado no Spam Zine, em minha casa o problema de meu pai era com os botafoguenses.
Apesar de estar em plena era Charles Borer (presidente que levou o clube pro buraco) o Botafogo vencia alguns clássicos, infernizava, ou mesmo colocava água no chope da gente. Por duas vezes, em 1979, tivemos que comemorar títulos com um empate. Um deles, de 2 a 2, em que até Gil fez gol de cabeça - e quem conheceu Gil sabe que gol de cabeça dele soa mais ou menos como ministro da Marinha boliviano. Para se ter uma idéia: como ponta, Gil era conhecido como Búfalo Gil. Depois, viraria bom técnico, mas hoje em dia esquecido.
Mas como eu ia dizendo, vesti sim a camisa do Botafogo, em nome da pelada da praia. Tudo se fazia pela pelada, inclusive superar rivalidades. Mas quando tentaram organizar e fazer o que hoje é conhecido como "time-contra", chegou-se ao extremo de colocar uniforme. E várias vezes eu caí no Botafogo. Teve um domingo que não teve pelada. Eu e uns amigos subimos ao apartamento do cara que era dono do time e tocamos a campainha. O cara abriu a porta com o radinho de pilha na mão, jogo rolando, com o maior sorriso do mundo:
- Fogão 1 a 0, gol de Renato Sá.
Eu não estava vestido com a camisa, mas tinha vestido na semana anterior ao domingo em que ouvi essa frase. Para o Botafogo, o jogo não valia nada. Para o Flamengo, significava alcançar a marca de 53 jogos invicto, um recorde brasileiro. As mais longas seqüencias chegam a 52 jogos. Aquela, do Flamengo. E outra, do Botafogo.
Eu disse que o jogo não valia nada para o Botafogo?
Isso é o que torna o futebol apaixonante - valia, e muito para o Botafogo. E venceram sim, com aquele gol mesmo de Renato Sá (que um ano antes, jogando pelo Grêmio, fez dois gols que tiraram A MESMA invencibilidade do Botafogo...), numa tarde em que o goleiro Borrachinha foi herói.
Sim, era isso, enfim cheguei onde eu queria: é por isso que eu amo o futebol - só no futebol podemos escrever a frase "Borrachinha foi herói".
Fluminense
Sem qualquer demérito, para mim sempre foi visto, quando criança, como o time dos garotos que não andavam descalços na rua. Sempre tinha tênis novos, bicicleta, autorama, esses garotos que eram Fluminense.
Mas que magia tinha esse Fluminense, na caneta de Nelson Rodrigues em O Globo. Uma mística inegável. Em 1976, triste eu estava, ouvido colado no radinho, tentando entender uma final Vasco x Fluminense. E aos 14 minutos da prorrogação, do SEGUNDO TEMPO da prorrogação, tive ciúme, ciúme de criança: meu ex-ídolo Doval, o centroavante argentino, fez de cabeça o gol do título tricolor.
Depois, meu relacionamento com o Fluminense seguiu adiante, mas faltava sempre um ingrediente: Isordil, o famoso remédio para o coração.
Em 1979, abri janelas por toda a casa berrando: "Cláudio Adão" (nossa, isso é absurdo demais), depois que o espetacular crioulo centroavante empatou (vestindo a camisa 16, tinha ficado no banco) o Fla-Flu em cima da hora.
Quatro anos depois, Assis, do Fluminense, ganhou um título estadual com um gol aos 46. Em um Fla-Flu. No ano seguinte, 1984, aos 30 do segundo tempo, tome Assis de novo. Meu pai, que tinha sofrido com Assis no ano anterior, já não estava mais na Terra para ver. Com certeza não teria aguentado tamanha bi-decepção.
Em 1991, veio a final do Estadual, novo Fla-Flu. Júnior, o grande Júnior, seu último estadual pelo Flamengo (antes de ganhar o Brasileiro no ano seguinte), deu show, 4 a 2 na final, com sobras.
Aí, essa parte, todos sabem. A bola bate na barriga do Renato Portaluppi e os tricolores escapam por pouco de estarem amargando um jejum de 17 anos sem títulos. No final do jogo, como tem que ser mesmo, Fla-Flu é isso. Deveria ter lá, no patrocinador das duas camisas, pelo menos quando fosse Fla-Flu: Um bom jogo pede Isordil, Isordil, o remédio oficial do Fla-Flu.
E teve ano passado um pênalti batido pelo Cássio. Mas deixemos Sobrenatural de Almeida descansar em paz.
Vasco
O Vasco foi sem dúvida alguma o clube que mais me deu alegrias e tristezas. Mas me considero no lucro. O Vasco me fez feliz em 1974, 1978 (gol de Rondinelli), 1981, 1986, 1990 (perderam do Botafogo, mas ri muito deles carregando caravelas), 1992 (ganharam do São Paulo e classificaram o Flamengo para a final do Brasileiro), 1996, 1998 (Raúl, do Real Madrid), 1999 (Rodrigo Mendes, de falta), 2000 e 2001 (Petkovic). Fora o Mundial Interclubes de 2000, perdido para o Corinthians.
Fiquei triste com as derrotas para o Vasco em 1977, 1987, 1988, e com as goleadas sofridas em 1997 e 2000 (5 a 1 na Taça Guanabara). E foi só.
Mas é um clube que respeito por sua história, por seu passado. O futuro, não dá para respeitar: joguete nas mãos de um dirigente ambicioso, que viu na polarização agressiva com o Flamengo a melhor forma de perpetuar seu poder.
E teve Romário, claro. O Vasco teve a capacidade de criar um ídolo de todo mundo, um ídolo de todo o Brasil - para mim, todo brasileiro que gosta de futebol de verdade, desde criança, tem que ser a favor do Romário na Seleção. Se não é, é tecnocrata ou guru da objetividade.
Teve também Edmundo, o rei da antipatia. Romário venceu a briga com ele, afinal em 2002, bem mais velho que o antigo símbolo vascaíno, foi pedido para a Seleção enquanto Edmundo está exilado no Japão.
Antes deles, às vezes ao mesmo tempo, teve Mazinho, Geovani, Bismarck. Também Guina, que foi expulso junto com Zico depois do gol de Rondinelli em 1978 - como poderia esquecê-lo?
O Vasco sempre terá uma cara de luta eterna, de continuidade da vida. Você briga com sua namorada, toma um pé na bunda, fica mal no emprego, se endivida, perde alguém, mas não importa muita coisa se no dia seguinte tem um Flamengo x Vasco decisivo. Acho que até velório deveria ser proibido durante um Flamengo x Vasco decisivo. Acima de tudo, não é um mero jogo de futebol, é um confronto entre nações. Populacionalmente falando, muito maior do que irlandeses contra ingleses, texanos contra mexicanos, bascos contra catalães. Flamengo x Vasco decisivo é ponto facultativo para Deus, meus caros.
Mas acima de tudo, nas décadas de 70 e 80, para mim, o Vasco era o sorriso de Roberto Dinamite. Se ele estivesse sorrindo em alguma foto, eu estava infeliz. Tinha sido gol dele. E quantos gols, quantos gols fazia Roberto Dinamite.
E por muitos anos, talvez até hoje, o sorriso de Roberto Dinamite seria a cara do futebol do Rio - o sorriso da felicidade descompromissada com o futuro, como deve ser o sorriso de quem está dentro de um estádio querendo somente uma tarde inesquecível - como são as tardes no Maracanã, seja ao lado de pai, irmão, amigo, namorada, primos, primas, enfim, tardes em que o domingo não se lembra da segunda.
Próximo capítulo: Cinco situações em que o futebol muda a sua vida (como mudou a minha), texto publicado originalmente no SPAM ZINE, e que publicarei aqui só na semana que vem