26 julho, 2005

Devagar com o andor

Sobre o mar de lama atual, há quem esteja vendo como novidade dos tempos atuais. Como bem destaca o Ivson, outro dia um jornalão deu manchete dizendo que Marcos Valério fez transação com o PSDB-MG, separando assim, por estado - tal procedimento não foi feito com o PT-CE, com o PT-SP. Todos viraram PT nacional nas denúncias. É, procede a queixa.
Meu objetivo - muito longe disso - não é defender o PT, e sim lembrar que o Brasil não chegou a ser governado por seres canonizados. E para isso, nada melhor que o excelente texto de Aldir Blanc publicado no Jornal do Brasil:

Aldir Blanc
Publicado no Jornal do Brasil em 26/07/2005
O deputado Sérgio Guerra (PSDB-PE) expectorou, na CPI dos Correios, em tom mucho surpreso:
- Nós falamos em milhões como se falássemos de trocados...
É verdade, deputado. Vossa Excelência tem razão. Como político profissional, deveria estar acostumado ao fenômeno (não confundir com o Ronaldo). No textículo abaixo, fornecerei alguns subsídios à perplexidade de Vossa Excelência.
O amigo e leitor Isaac Goldenberg respondeu a meu pedido de ajuda lançado em crônica passada. Recebi um suculento e-mail que, certamente, será de utilidade pra alcatéia que gosta de carniça fresca e omite o que lhe convém. Vamos ver alguns milhões que viraram trocados, deputado Sérgio Guerra:
1. Sivam - O tal Sistema de Vigilância da Amazônia, que derrubou ministros e assessores presidenciais de FHC I e II. Cifra estimada do contrato, entre outras denúncias de corrupção e tráfico de influências: US$ 1,4 bilhão!
2. Com o Programa de Estímulo à Reestruturação do Sistema Financeiro (Proer), tucanagens de FHC I e II beneficiaram com R$ 9,6 bilhões o Banco Econômico, para favorecer o aliado ACM, vulgo Malvadeza. Hoje já temos até o Malvadinho atuando na CPI dos Correios.
3. Precatórios - Mutreta com pagamentos de títulos no DNER (Departamento de Estradas de Rodagem). Prejuízo estimado: R$ 3 bilhões.
4. Compra de votos - Essa foi muito bacaninha, deputado Sérgio Guerra, porque mostra a diferença entre mensalão do PT e mesadão das elites. Aqueles que votaram a favor dos projetos de governo de FHC I e II teriam recebido R$ 200 mil (cada um, claro). O pedido de uma CPI foi afundado pelos dignos parlamentares governistas.
5. Socorro nas coxas aos bancos Marka e FonteCidam - Rombo no bolso da galera em torno de R$ 1,6 bilhão. Tem até banqueiro foragido. Pra variar e ficar igual, proposta de criação de uma CPI foi arquivada pela bancada governista.
6. Apoio à Previ, caixa de previdência do Banco do Brasil, pra uma mãozinha - grande - ao consórcio do Banco Opportunity. Um dos donos do banco era o tucano Pérsio Arida. A negociata envolvia a Telebrás, o BNDES, o então ministro das Comunicações, Luis Carlos Mendonça de Barros etc., etc. Valor estimado da cartada: R$ 24 bilhões. CPI evitada.
7. Denúncia em torno da grande figura tucana Eduardo Jorge, secretário geral da Presidência de FHC - esquema de liberação de verbas no valor de R$ 169 milhões para o TRT/SP; lobbies para favorecer empresas de informática; uso dos fundos de pensão nas privatizações.
8. O procurador-geral da República da época, Dr. Geraldo Brindeiro, foi batizado de ''Engavetador Geral''. Dos 626 inquéritos instalados até maio de 2001, 242 foram engavetados e 217 arquivados. Envolviam 194 deputados, 33 senadores, 11 ministros e ex-ministros e, em quatro deles, o próprio FHC I I e II.
Não apuraram lhufas.
De nada, deputado Sérgio Guerra. Disponha sempre.

17 julho, 2005

16 de julho


Juvenal chega atrasado. O Brasil assim fica. Uruguay 2 a 1, Ghiggia herói.O gol lhe valeu um contrato com o Roma em 1953

Muitas coisas nos inviabilizaram como nação próspera e sem desigualdades, tais como a corrupção, o clima dos trópicos, a exploração externa, a xenofobia, a dívida com o G-8 e o Eurico Miranda. Mas sem dúvida alguma o dia 16 de julho sempre será lembrado como o dia em que deixamos para trás a chance de sermos um país próspero - por mais que tal tese tenha mais cara de lenda do que de realidade. Digamos que o 16 de julho seja um símbolo, o apogeu de uma ópera trágica e cômica: nossa inviabilidade.

Residem no antes, durante e depois dos 90 minutos alguns dos maiores traços da brasilidade: o otimismo injustificado, o desleixo do poder público (nossos jogadores só puderam "almoçar" sanduíches de queijo com presunto com água mineral, sentados em imundos colchonetes), o imaginário causado pelo medo (o tapa de Obdúlio Varela em Bigode, que segundo muita gente boa jamais existiu), a exploração política dos fatos e a cruficicação dos culpados - até morrer, em 2003, Barbosa repetiria a mesma frase:

- No Brasil, a pena máxima é de 30 anos. Eu já pago pelo meu crime há 50.

Há quem aposte: Brasil 1 x 2 Uruguai foi uma tragédia brasileira mais terrível que o Joelma ou que as guerras contra Solano López. Para nossa formação como país, foi um desastre. Um país campeão do mundo em sua arena talvez fosse um combustível a mais para os anos prósperos que se seguiram. As substituições de importações do incompreensivelmente saudoso JK não puderam preencher a lacuna na alma de quem acompanhou o episódio. Nós, de 30 anos ou mais, tivemos no mínimo um tio, ou o pai, como testemunhas daquele gigantesco silêncio.

Naquele 16 de julho, ainda tivemos o ciúme que guardaremos para sempre: por mais penta ou hexa que seja o Brasil, a vitória mais espetacular da história das Copas é sem dúvida alguma a do Uruguai. O escritor uruguaio Eduardo Galeano descreve desta forma o episódio, em seu excelente Futebol ao som e à sombra:

"Quando houve o gol de Ghiggia, explodiu o silêncio no Maracanã, o mais estrepitoso da história do futebol, e Ary Barroso, o músico autor de Aquarela do Brasil, decidiu naquele momento abandonar para sempre o ofício de locutor de futebol. Depois do apito final, os comentaristas brasileiros definiram a derrota como a maior tragédia da história do Brasil. Jules Rimet perambulava pelo campo, perdido, abraçado ao troféu que levava o seu nome:

- Fiquei sozinho, com a taça em meus braços, e sem saber o que fazer. Acabei por descobrir o capitão uruguaio, Obdulio Varela, e a entreguei quase às escondidas. Apertei-lhe a mão sem dizer nem uma palavra".

Galeano conta que Jules Rimet já tinha pronto no bolso um discurso para exaltar o Brasil campeão, o mesmo Brasil que levou o mundo ao delírio ao golear por 6 a 1 a Fúria Espanhola, ao som de Touradas em Madri, diante do autor, Braguinha, em lágrimas. O otimismo pré-jogo - o craque Zizinho assinou duas mil fotografias com a inscrição "Brasil Campeão" - me lembra os ciclos eleitorais, a sensação de "agora vai", a esperança que parece vencer o medo mas na verdade empata. Estamos sempre esperando. A palavra Quase é brasileiríssima - em inglês, é muito mais otimista e copo meio cheio o Almost do que nosso copo meio vazio Quase. Naquele dia 16 de julho foi quase. Faltavam só dez minutos quando Ghiggia se aproveitou de um momento de indecisão entre Bigode e Juvenal e chutou fraco entre Barbosa e a trave. O próprio Bigode - acusado por Juvenal de ser o culpado - já jogou a responsabilidade para Barbosa certa vez, dizendo que o chute foi tão fraco que ele deu as costas achando que o goleiro vascaíno iria pegar.

Na definição de Carlos Heitor Cony, "o Brasil ficou adulto sem querer". Boa, mas eu creio que ali nós perdemos o direito à infância, ao lúdico, sem necessariamente crescer por causa disso. Os personagens daquela tarde estão, quase todos, aos poucos, morrendo - tanto os do campo quanto os da arquibancada. Mas tenho dúvidas se com mais cinco ou seis gerações a derrota de 50 será esquecida. Gostaria de estar vivo em 2050 para ver seu centenário. Os netos serão entrevistados - talvez alguém revele o que certa vez revelou Tomás Soares da Silva, sem gravador ou testemunhas, a um repórter do jornal O Fluminense, uma cena jamais publicada. Depois de conversar pela enésima vez sobre a tragédia, Zizinho, que sempre vivia o inferno todo mês de julho, contou, em off e descontraidamente, que foi com mais dois jogadores ao vestiário uruguaio cumprimentar os campeões - fato já conhecido. O que ele nunca contou é que o vestiário estava repleto de seringas usadas, como se os celestes tivessem injetado algum aditivo antes do confronto.

Morto em 2002, Zizinho não poderá mais falar nem em off. Mas, mesmo que isto fosse revelado com provas ou confissões uruguaias, nada poderá nos dizer que país seríamos se naquela tarde de 1950, em um último cruzamento sobre a área de Maspoli, após a deixada de Zizinho, o atacante Ademir Menezes, o Queixada, tivesse chutado para dentro em vez de chutar para fora, como aconteceu. E talvez aí resida nossa maior dor diante desta e de outras tragédias nacionais: ainda não sabemos que país poderíamos ser.

14 julho, 2005

Bestas-feras ou o país de Mauro Marcelo



Outro dia, em um debate de jornalistas no Jô Soares (o gordo no meio de quatro mulheres), foi exibido um clipe da CPI Mista do Mensalão. Gritos, ameaças, réplicas furiosas, várias pessoas berrando ao mesmo tempo, enfim, uma babel de grunhidos foi o que se viu no clipe de cinco minutos. Como já comentei alguns posts antes, tudo isso para, como já sabemos, nada ser feito, ninguém ser preso, no máximo uma bocada ou outra ser cancelada, e vejam bem: temporariamente.
Estou sendo pessimista? Ok, me dêem um nome, apenas um nome de uma pessoa de posses que esteja presa no Brasil por obra de inquérito encaminhado ao MP por uma CPI. Lembram-se dos anões do Orçamento? Ninguém. CPI do Collor? Neca. As duas CPIs do futebol, a do senado, presidida por Geraldo Althoff, e a da Câmara, se não me falha a memória, presidida por Aldo Rebello, terminaram em alguma gaveta do Ministério Público Federal, provavelmente sem força para respirar em um país sufocado por comemorações do Penta, da Copa América, etc, etc.
Só a CPI do futebol (leia-se CPI da Nike) já é uma prova inequívoca que a política ademariana do Rouba Mas Faz ainda tem muita força no país. Claro, para usar a figura de outro político tradicional, o José Maria Alckmin (nenhum parentesco com o governador de SP), o que importa é a versão dos fatos.
E nunca, nunca em tempo algum, nem na ditadura militar que enriqueceu muitos dos nossos contestadores (alguns deles no governo), houve tanta censura, tanta pressão no Brasil, por meio de grupos econômicos. Por essas e outras é que em certos jornais esportivos a investigação acerca dos desmandos na CBF é curiosamente suspensa, por essas e outras é que os mensalões de governos anteriores não são investigados, e, já que este blog foi incluído na lista do Vox libre, vale dizer, por essas e outras é que se investigam os policiais em vez de se investigarem os criminosos - como no surreal caso da rinha de galo, em que o publicitário Duda Mendonça falou em rede nacional que é infrator mesmo e daí. Oito meses depois, os delegados que o prenderam em flagrante respondem a inquéritos, sindicâncias, são perseguidos, perdem tempo, saúde, são esquecidos pela mídia, são transferidos para longe de suas famílias, o diabo, tudo com o poder central por trás das retaliações.
E isto se permite no Brasil.
Se fosse o cidadão comum, por exemplo, preso com maconha e falasse para todo o Brasil, "eu fumo maconha mesmo e todo mundo sabe disso", é óbvio que estaria preso. Mas é o Duda, e por isso além da impunidade se tem o privilégio de atirar no ostracismo aqueles que descobriram seu delito.
Aí vem o tal Mauro Marcelo Lima e Silva, que eu não conheço, e, ainda no cargo de diretor da Agência Brasileira de Inteligência, chama os parlamentares da CPI de bestas-feras. Quem viu o tal clipe no Jô e ouviu isso, provavelmente pára pra pensar. Seria a frase de Mauro Marcelo uma opinião ou uma denúncia?
Mauro Marcelo, claro, já foi afastado da direção da ABIN, exatamente um ano depois de tomar posse e ser elogiadíssimo pelo próprio Lula, ressaltado como defensor da democracia. E, pelo pouco que já li dele, indicado por pessoas da área de segurança pública em São Paulo, é bem possível. Não sei se é o caso de achar que seu ataque aos deputados da CPI foi um ataque ao Legislativo. Para mim, foi um ataque de qualquer cidadão ao ver o tal clipe no Jô Soares.
Seu afastamento - obviamente elogiado pela imprensa - me soa, portanto, como aquele sujeito que é silenciado por ter gritado que o rei estava nu. Seu afastamento foi tão imediato e rápido, porém, que duvido ter dado tempo de Nossa Majestade se vestir. Continuamos sendo, sim, o país das bestas-feras, o país do vídeo, aquele onde deixou de valer o escrito (só no jogo do bicho) para valer o televisionado. Grita-se no plenário, silencia-se nos bastidores.
O único grito é, "garçom, mais outra pizza". Afinal, eles não são bestas.