10 junho, 2004

Hit the road, Ray Charles





Lá pelos idos de 1968, um sujeito cantava "I can´t stop loving you" para um recém-nascido, a fim de fazê-lo dormir. Segundo relatos de duas décadas depois, o método era eficaz. Além da mensagem comovente de um pai para um filho, pesava ainda na hora de embalar o sono o fato de "I can´t stop loving you" ser uma melodia terna, própria para proporcionar paz a quem a ouve. E não há, na verdade, maior declaração de amor que essa música - na verdade, deve até existir, mas em um momento no qual perdemos aquele que é seguramente o músico do século 20, as opiniões só podem ser radicais. Perdemos Ray Charles, o mundo inteiro perdeu Ray Charles. Todos os cantos do mundo, mesmo os mais inóspitos, perderam Ray Charles.
Serve para me confortar a crença, sim, extremamente romântica e fantasiosa, de que Ray está no mesmo plano dimensional agora que o sujeito que em 1968 cantava sua música para ninar um recém-nascido. Enquanto isso, o recém-nascido, hoje com 36 anos, está aqui escrevendo nesse blog, em uma tentativa de aplacar a estupefação diante da verdade massacrante: Ray Charles morreu, e eu não sabia mesmo que Ray Charles morria.
Na década de 50, ele apareceu com "Baby let me hold your hand", "See see rider" e "I got a woman", um piano que pelo som parecia daqueles "de armário", o toque forte das notas agudas, a voz levemente rouca, como deve ser o tom de doce dos vinhos secos. Pode-se dizer, sem medo de errar, que Ray Charles inventou o Soul. Sim, foi ele, ao misturar o estilo gospel das igrejas do Sul dos EUA com o velho blues e o rock ainda na proveta de Bill Halley.
Ray Charles morreu aos 73 anos (faria 74 em 30 de setembro, segundo pesquisa que fiz agora), mas dói pensar que destes anos todos ele só enxergou em no máximo cinco. Seu glaucoma congênito foi minando sua visão desde os quatro anos e aos sete ele já vivia na escuridão.
Como na frase meio lugar comum de Niesztche, ele precisou penetrar na angústia do caos (e da escuridão) para engendrar estrelas. E deu ao mundo algumas das maiores interpretações da história da música, como "Somewhere (Over the Rainbow)", "You don´t know me", "Hit the road Jack", "Georgia on my mind" (que em 1990 virou hino do Estado da Geórgia), "Yesterday" (dos Beatles, na qual ele chega a soluçar) e a já citada "I can´t stop loving you", também muito boa na voz de Roy Orbison.
Poucas pessoas em uma pista de dança, por exemplo, resistem a "Shake a Tail Feather", que aparece no filme "Blues Brothers", com John Belushi e Dan Aykroyd. No filme, todos os transeuntes começam a dançar em torno da loja de instrumentos musicais do velho Ray. No fim do filme, Ray participa de uma brincadeira ótima de humor negro - apesar de fazer papel de alguém que enxerga, ele prega um cartaz de show de cabeça para baixo. O público não resistia. Viciado em heróina até o fim dos anos 60, o velho Ray comeu o pão que o diabo amassou para se livrar da droga, mas jamais perdeu o bom humor. O sorriso de Ray Charles deveria ter sido registrado como marca.
Ray teve diversas fases em sua carreira. Gosto de absolutamente todas. Eu posso dizer que gosto de Ray Charles até mesmo cantando o jingle da Pepsi. Meu pai gostava particularmente da fase "Georgia on my mind", em que os arranjos eram mais elaborados, com cordas e metais ao melhor estilo Ray Connif. É dessa fase também a maravilhosa "Ruby", a estupenda "Memories" (nunca descobri o nome da cantora com quem ele fez dupla nessa música) e "Baby it´s cold outside". Me parece que é a fase pós-heroína, em que ele já estava meio "careta". Mas, qual o quê. Ray Charles jamais seria "careta". Nem "doidão". Era "apenas" um músico perfeito, uma voz extraordinária, inimitável, um piano diferente, também de estilo próprio. Tenho lembranças aos montes de ouvir Ray Charles desde criança.
Hoje, a melhor memória que tenho de Ray Charles, porém, está perdida, em alguma parte do subconsciente. O recém-nascido cresceu (em termos), a música continuou em algum canto da eternidade, a maior parte dos encantos passou, a expectativa em relação à vida mudou, com o amadurecimento.
Mas "I can´t stop loving you" ainda sopra entre as folhas das árvores. Vá em paz, Rei.